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A Arte da Imperfeição na Música de Gilberto Gil: Uma Despedida Wabi-Sabi

Foto do escritor: João Vitor Viana RibeiroJoão Vitor Viana Ribeiro

Imperfeição, silêncio, transitoriedade: princípios de uma filosofia milenar que encontram eco na obra e no gesto de despedida de um dos maiores artistas brasileiros


Foto: Autor não identificado. Gil na praia da Armação, na lendária “Casa Redonda”, Salvador, 1968. Acervo digital do Instituto Antonio Carlos Jobim. Ver imagem no acervo
Foto: Autor não identificado. Gil na praia da Armação, na lendária “Casa Redonda”, Salvador, 1968. Acervo digital do Instituto Antonio Carlos Jobim. Ver imagem no acervo

Se há um artista na música brasileira que compreendeu a arte da imperfeição, esse artista é Gilberto Gil. Sua obra, marcada pela fusão de referências, pela fluidez entre gêneros e pela constante reinvenção, nos ensina a beleza do imperfeito, do efêmero e do inacabado. Essas são qualidades que encontram eco em uma filosofia estética japonesa conhecida como wabi-sabi, que valoriza a impermanência e a simplicidade como fundamentos da experiência estética e da própria vida.


O conceito de wabi-sabi surgiu no Japão entre os séculos XV e XVI, consolidando-se como uma sensibilidade estética que se opõe à busca pela simetria e pelo acabamento perfeito. Ao invés disso, enxerga no desgaste do tempo, na assimetria e nas marcas da existência uma forma de beleza genuína. É uma estética que se reflete, por exemplo, na cerâmica rachada, no jardim com folhas caídas e no objeto que carrega a memória do uso – valorizando a profundidade e a organicidade em vez da perfeição formal.


Há uma cerimônia japonesa chamada kintsugi que não conserta vasos quebrados — celebra suas rachaduras. Com pó de ouro, transforma as fissuras em veios luminosos, como se dissesse: "Aqui é onde a vida passou, e é aqui que ela brilha." Gilberto Gil, de certa forma, sempre fez kintsugi com os sons.


“Feiticeiro”,  arte em cerâmica de Francisco Brennand (1988). Foto: Hesíodo Góes.
“Feiticeiro”, arte em cerâmica de Francisco Brennand (1988). Foto: Hesíodo Góes.

O que um músico baiano tem a ver com um conceito japonês do século XV?


O wabi-sabi é a arte de encontrar o sublime no imperfeito, no passageiro, no que já começa a se desfazer. Não por acaso, floresceu no Japão em meio a guerras civis — assim como Gil compôs Aquele Abraço na cela da ditadura, e Tempo Rei quando o Brasil sangrava na abertura lenta da democracia.


“Tudo permanecerá do jeito que tem sido / Transcorrendo, transformando”(Tempo Rei, 1984)

Na música de Gil, o wabi-sabi se manifesta de maneira sutil, mas presente. Seu processo criativo nunca se limitou a seguir padrões rígidos. Ao contrário, sempre esteve aberto ao acaso, ao improviso e à fusão inesperada de ritmos e ideias. Gil nos ensina que a música pode ser um espaço de liberdade – um território em que a beleza se encontra não na exatidão, mas na espontaneidade. A própria trajetória do artista é um reflexo disso: um percurso onde rupturas e experimentações constroem uma identidade única, em constante renovação.


O que Gilberto Gil cria não é grandioso por ser perfeito, mas por ser vivo. Sua voz carrega os rastros do tempo. Sua música respira. A afinação não é rígida, mas flexível, como o bambu. Sua interpretação deixa espaço para a dúvida, para o erro, para a pausa. É o mesmo princípio do jardim zen: o vazio não é falta, é respiro.


Na estética japonesa, existe o conceito de ma — o espaço entre as coisas, o intervalo que sustenta a forma. Gil sempre soube habitar esse entre: entre gêneros, entre palavras, entre ideias. No "entre" é onde Gil habita com mestria. Nos shows, ele alonga o silêncio antes do refrão de "A Paz". Nas gravações, deixa a respiração audível entre uma palavra e outra em "Drão". São esses vazios que tornam sua música arquitetura de ar e significado, como os jardins de pedra de Kyoto.


Gilberto Gil comendo uma refeição macrobiótica no Japão. Autor desconhecido. Fonte: UOL Guia
Gilberto Gil comendo uma refeição macrobiótica no Japão. Autor desconhecido. Fonte: UOL Guia

A turnê da impermanência


Agora, iniciando sua turnê de despedida, a relação entre Gilberto Gil e o wabi-sabi se torna ainda mais evidente. Seu adeus aos palcos não vem carregado de lamentos ou de uma busca pelo auge técnico da performance, mas sim de um profundo reconhecimento da beleza da transitoriedade. Há algo de profundamente humano e poético em assistir a um artista que, ao longo de décadas, sempre abraçou as mudanças, agora se despedindo sem medo do tempo.


É como se sua carreira inteira tivesse sido construída sobre a compreensão de que a impermanência é parte fundamental da arte e da vida.Essa despedida não é um adeus, mas um “até já” em forma de música. Porque Gil, como o wabi-sabi, nos ensina que:


Tudo é impermanente (até os reis saem de cena). Tudo é imperfeito (e é por isso que a gente dança). Tudo é incompleto (por isso a canção nunca acaba no último acorde).

Quem for ao show em Brasília (eu vou, dia 07/06!) testemunhará um artista que não disfarça os 82 anos – expõe-nos como quem mostra as veias de ouro de um vaso. A voz pode falhar? Falhará. A memória pode tropeçar? Tropeçará. Mas é aí, no instante em que o humano irrompe através do mito, que a obra se completa. Porque Gil sabe: a verdadeira música não está nas notas, mas no que vibra entre elas. Nos silêncios, nos tropeços, no suor que escorre depois de Palco. É aí que mora a verdadeira obra-prima.


Gil em meditação. Foto publicada em 2017 no Facebook oficial (imagem fora do ar).
Gil em meditação. Foto publicada em 2017 no Facebook oficial (imagem fora do ar).

Em Londrina, o professor Paulo Vitor Poloni propõe outro tempo de escuta: ensinar Gilberto Gil não pela régua da perfeição, mas pela vibração do instante. Com ele, os alunos aprendem que a voz pode carregar rugas, que o silêncio entre os acordes é parte da música, e que o acidente também compõe. Como num jardim zen, onde o vazio é forma — e como na obra de Gil, onde a presença nunca foi sobre controle, mas sobre entrega.


Na cerimônia do chá, há um gesto chamado sado: o anfitrião revela a rachadura da xícara ao convidado. Gil, em sua turnê de despedida, faz o mesmo. Mostra a memória que falha, a voz que já não sobe — e, com isso, nos oferece algo raro: intimidade. Porque cantar também é saber calar. E se despedir pode ser só mais uma forma de continuar.


E você?


Qual música de Gilberto Gil melhor traduz, pra você, a beleza do que é passageiro?“Toda canção é uma despedida em miniatura”, dizia o poeta.


Comente abaixo — ou, se for aluno do professor Paulo Vitor Poloni, em Londrina, conte como está recriando essas imperfeições nas aulas de canto.


Nos próximos textos, vamos explorar mais a fundo essa conexão entre Gilberto Gil e o wabi-sabi, incluindo o trabalho do professor Paulo Vitor. Como os alunos podem trazer essa filosofia para sua prática vocal? De que maneira o estudo da música de Gil pode ser uma porta de entrada para entender essa estética? Essas são algumas perguntas que seguiremos investigando – porque, assim como o wabi-sabi, este ensaio também será um processo contínuo de descoberta.

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